Eles também têm direito de "ver"




Pela primeira vez no Ceará, crianças com deficiência visual poderão assistir a um espetáculo teatral por meio da audiodescrição, no CCBNB


Com fones em um dos ouvidos, as crianças poderão ouvir a descrição dos cenários, da iluminação e do movimento dos atores. Com o outro, escutam as músicas e os diálogos dos personagens.
 
A peça “A Vaca Lelé”, que dura 45 minutos, ocorre no ritmo normal, respeitando também as crianças videntes.


Teatro é uma arte visual, requer atenção a cada movimento dos personagens, mudanças de figurino e iluminação. Para os deficientes visuais, até pouco tempo era impossível assistir a um espetáculo do tipo. Porém, em Fortaleza, o grupo Bandeira das Artes, formado por Klístenes Braga, Bruna Alves Leão, Davidson Caldas, Luís Carlos Pedrosa e Solange Teixeira, abraçou a causa e desde janeiro do ano passado vem pensando na questão das crianças com esse tipo de deficiência.

O interesse não surgiu à toa. Klístenes e Bruna fazem parte do Lead, grupo de pesquisa da Uece, coordenado pela professora Vera Lúcia Santiago, que promove a acessibilidade audiovisual de deficientes visuais e surdos no cinema, teatro e museus, através da audiodescrição e da legendagem.

Hoje, pela primeira vez no Ceará, será apresentada uma peça infantil com audiodescrição para 100 crianças do Instituto Hélio Góes (pertencente à Sociedade de Assistência aos Cegos), e da Escola de Ensino Fundamental Instituto de Cegos.

Trata-se do espetáculo “A Vaca Lelé”, projeto de José Alves Netto apresentado pelo Grupo Bandeira das Artes, com texto de Ronaldo Ciambroni e direção de Ana Cristina Viana. “É bem simples. Analisamos as imagens de um vídeo da apresentação e identificamos espaços e descrições que devem ser priorizados, de forma que não se sobreponham ao diálogo e às músicas do espetáculo”, explica Klístenes, autor do roteiro da audiodescrição e também narrador da peça.

A partir das imagens, o texto, incluindo características de cenário, figurino e da movimentação dos atores (por exemplo, se estão à direita ou à esquerda, se caminham de trás da plateia em direção à frente do palco), é elaborado, respeitando o ritmo normal da encenação. “Até porque crianças videntes também assistem”, justifica.

Em seguida, é feito um pré-teste, quando a peça é encenada para que o narrador avalie se o roteiro está adequado ao ritmo e faça os ajustes necessários. Durante a apresentação definitiva, a narração, diferente do cinema, é realizada ao vivo, já que o teatro está sujeito aos imprevistos e improvisos. “Utilizamos equipamentos semelhantes aos de tradução simultânea interlinguística. O público fica com fones em um dos ouvidos. O outro fica livre para ouvir as músicas e os diálogos”.

O ideal, explica Klístenes, é que o narrador esteja num local com isolamento acústico, sem interferências dos sons externos. No caso do BNB, a transmissão ocorre de dentro da cabine de operação de luz e som.

O texto é tão completo que chega a descrever detalhes da iluminação. “Apesar de serem cegos de nascença, essas crianças aprendem as cores através das sensações. Por exemplo, o vermelho está ligado às situações de perigo; o azul lembra suavidade; o verde relaciona-se com a ecologia”.

Antes do início da peça, ele faz a leitura da sinopse do espetáculo. “Pensamos em disponibilizar a história na Língua Brasileira de Sinais, mas, por conta da faixa etária, algumas crianças ainda não foram alfabetizadas em Braille”.

Universo adulto

No ano passado, quatro espetáculos adultos foram apresentados por meio desse modelo de audiodescrição: “Astigmatismo”, “Magno-pirol: encontro na loucura”, “Curral grande” e “Tudo que eu queria te dizer”. “Não é possível falar em reação do público porque eles não têm parâmetros de comparação. Nunca tinham assistido a uma peça de teatro”.

Um passo de cada vez. É assim que Klístenes define o trabalho cujo desafio maior é produzir, com o tempo, roteiros cada vez melhores que consigam elucidar a mensagem da peça, atentando para a enorme capacidade de memorização dos deficientes visuais. “Depois da apresentação, vamos fazer um teste de recepção com algumas crianças para avaliar a efetividade do que elaboramos”.

De acordo com Viviane Queiroz, coordenadora de Programação Infantil e Artes Cênicas do CCBNB, os infantis são exibidos no Centro durante os domingos, mas como essa apresentação de “A Vaca Lelé” é dirigida especialmente aos deficientes visuais teve de haver mudança na data. “Eles têm maior dificuldade de sair de casa com a família, então resolvemos oferecer transporte para trazê-los com a escola durante a semana”. A ideia agora é utilizar a apresentação como teste para fazer uma agenda regular. “Já temos o Ouvir Dizer, com apresentação de leituras dramatizadas de textos de autores da literatura brasileira e universal e disponibilização do acervo para deficientes visuais e interessados”.

Fique por dentro 
Infantil premiadoO espetáculo “A Vaca Lelé” está em cartaz há cinco anos. Já foi contemplado com o Prêmio Eduardo Campos de Teatro, o Prêmio de Melhor Espetáculo Infantil do Festival de Teatro de Fortaleza e o Prêmio Balaio Destaques do Ano em sete categorias, incluindo Melhor Espetáculo Infantil. No elenco, Bruna Alves Leão, Davidson Caldas, Luís Carlos Pedrosa e Solange Teixeira. Conta a história de Matilde, uma vaquinha que vivia fugindo do curral, porque era cheia de curiosidades e sonhos: queria criar asas e voar.

SÍRIA MAPURUNGAREPÓRTER

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